O decreto municipal 64.244, de 28 de maio de 2025, traz impactos ao setor imobiliário paulistano, com foco na produção habitacional de interesse social e mercado popular. Voltado à fiscalização e destinação adequada de unidades de HIS – Habitação de Interesse Social e HMP – Habitação de Mercado Popular, o decreto altera profundamente o decreto 63.130/24 e fortalece os instrumentos de controle urbanístico sobre empreendimentos implantados em ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social.
A norma altera substancialmente os procedimentos e exigências, estabelecendo critérios de valores máximos de venda e locação, faixas de renda dos beneficiários e mecanismos de fiscalização. A partir disso, propõe-se um conjunto de recomendações jurídicas, de governança e operacionais que devem ser implementadas por incorporadoras e construtoras para se manter em conformidade e mitigar riscos legais.
Desafios regulatórios para construtoras na habitação popular
O decreto representa uma reestruturação significativa na regulamentação das unidades HIS e hmp, especialmente no que diz respeito à transparência, função social e controle sobre o uso dos imóveis. Ao estabelecer limites claros para os valores de venda e locação das unidades, atrelando os aluguéis a um teto de 30% da renda familiar, o decreto reforça a função social da moradia e impõe maior controle sobre sua destinação, conforme tabela abaixo: Classificação Faixa de Renda Familiar Mensal Valor Máximo de Venda Valor Máximo de Locação HIS-1 Até R$ 4.554,00 ou R$ 759,00 per capita R$ 266.000,00 HIS-1: R$ 1.366,20 HIS-2 Até R$ 9.108,00 ou R$ 1.518,00 per capita R$ 369.600,00 HIS-2: R$ 2.732,40 HMP Até R$ 15.180,00 ou R$ 2.277,00 per capita R$ 518.000,00 HMP: R$ 4.554,00
Esses valores têm efeito vinculante para incorporação, comercialização e financiamento, funcionando como limitadores formais à atuação do mercado em empreendimentos com finalidade social. Uma das principais inovações é a proibição da locação por temporada ou de curta duração, medida que visa evitar o desvirtuamento do uso residencial para fins turísticos, comerciais ou de hospedagem transitória. Ao vedar essa prática, o município busca preservar a função social da propriedade, assegurar estabilidade habitacional às famílias beneficiadas e impedir a conversão dessas unidades em ativos de especulação ou fontes de renda alternativa.
O decreto atribui às subprefeituras a competência para fiscalizar a publicidade de empreendimentos HIS e HMP, incluindo folders, sites, estandes e mídias digitais. Irregularidades devem ser encaminhadas à SEHAB e à PGM, viabilizando uma atuação descentralizada e imediata. A medida reforça o dever de transparência e amplia a responsabilidade das incorporadoras sobre a comunicação institucional e comercial dos empreendimentos.
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Procedimentos jurídicos obrigatórios
É obrigatória a averbação, na matrícula dos imóveis, da destinação social da unidade, HIS-1, HIS-2 ou HMP, com indicação expressa da faixa de renda familiar atendida. Essa anotação deverá ser realizada no momento do registro do empreendimento ou da unidade autônoma, vinculando formalmente o imóvel à sua finalidade habitacional social, nos termos do decreto 64.244/25. Para cada unidade, caberá à incorporadora, e não mais às instituições financeiras, emitir a certidão de renda familiar do adquirente, conforme modelo da SEHAB, e assinar termo de responsabilidade quanto à veracidade das informações e ao correto enquadramento nas faixas definidas.
A falsidade ou omissão de dados poderá resultar em sanções administrativas e penais, conforme o art. 5º do decreto, representando risco jurídico direto à incorporadora. Os contratos de promessa de compra e venda deverão conter cláusulas obrigatórias que proíbem a revenda acima do valor-teto, vedam a alienação a adquirentes fora das faixas de renda e impõem uso exclusivamente habitacional por, no mínimo, 10 anos após o “Habite-se”.
Também será exigido consentimento expresso para tratamento de dados pessoais, conforme a LGPD, permitindo a fiscalização pela SEHAB. Essas exigências reforçam a rastreabilidade jurídica, asseguram a efetividade das políticas habitacionais e consolidam a corresponsabilidade das incorporadoras na preservação da função social da propriedade.
Governança, compliance e oportunidades estratégicas
Fato é que, o decreto impõe um novo paradigma regulatório ao setor da habitação popular em São Paulo, com exigências jurídicas, técnicas e operacionais que afetam diretamente o modelo de negócio de incorporadoras e construtoras. Mais do que cumprir etapas burocráticas, será necessário revisar com profundidade os procedimentos internos que envolvem o desenvolvimento, o registro e a comercialização de empreendimentos HIS e HMP, sob pena de exposição a riscos concretos, jurídicos, administrativos e reputacionais.
O novo regime demanda que as empresas tenham domínio sobre normas urbanísticas específicas, procedimentos registrais, critérios de renda familiar, restrições de uso e revenda, além de cuidados adicionais com a publicidade e com o tratamento de dados pessoais dos adquirentes. Cada uma dessas frentes exigirá soluções jurídicas articuladas e atualizadas, que dialoguem com a regulamentação ainda pendente da SEHAB e com o funcionamento prático dos órgãos fiscalizadores.
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O decreto incorpora, ainda, uma lógica de responsabilização objetiva por parte do incorporador, que passa a assumir o dever de verificar renda, garantir a destinação habitacional e manter o vínculo legal do imóvel à sua finalidade social por um período de dez anos. Isso afeta diretamente a formulação contratual, o relacionamento com clientes e os controles internos da empresa. A ausência de uma estrutura adequada para lidar com essas exigências pode comprometer não apenas um empreendimento, mas também a reputação institucional da incorporadora junto ao mercado, ao poder público e aos órgãos reguladores.
É nesse contexto que se impõe uma atuação jurídica especializada, capaz de revisar cláusulas contratuais, ajustar processos de due diligence documental, orientar campanhas de divulgação à luz das novas regras e estruturar modelos de compliance voltados à habitação popular. A adoção preventiva dessas medidas não apenas reduz o risco de autuações e litígios, como também posiciona a empresa de forma estratégica para acessar os benefícios vinculados ao regime: incentivos fiscais, agilidade no licenciamento, maior previsibilidade urbanística, elegibilidade para parcerias com o poder público e aderência a parâmetros ESG exigidos por financiadores e investidores institucionais.
Não se trata, portanto, de apenas “cumprir o decreto”, mas de compreender suas implicações profundas e transformá-las em diferencial competitivo. Empresas que buscarem orientação qualificada desde já estarão mais bem preparadas para operar nesse novo ambiente regulatório, com segurança, conformidade e visão de longo prazo. O desafio regulatório é, ao mesmo tempo, uma oportunidade para requalificar o mercado imobiliário com foco na justiça a social e na sustentabilidade urbana.
Getlaine Coelho Alves – Advogada e sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA).