Dia: 21 de março de 2023

  • CSSL e coisa julgada: no meio do caminho havia um precedente

    CSSL e coisa julgada: no meio do caminho havia um precedente

    O acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da limitação da coisa julgada em matéria tributária (Temas 881 e 885) sequer foi publicado, mas Fisco e contribuintes já travam intensa batalha acerca da intepretação e do alcance do julgamento.

    Na ótica do Fisco a questão está exaurida. A coisa julgada obtida para o não pagamento de tributos de recolhimento continuado cessa automaticamente assim que decisão em sentido contrário venha a ser ou tenha sido posteriormente exarada pelo STF em julgamentos que envolvam controle direto de constitucionalidade ou segundo a sistemática de repercussão geral.

    Para os casos futuros, de fato, o assunto resta resolvido. Quando o STJ vier a firmar tese no sentido de que determinada exação é constitucional, a partir dali, cessa a eficácia de decisão individual anterior transitada em julgado, respeitadas nos termos da tese firmada “a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal

    A questão complica-se com relação a declarações de constitucionalidade do passado vis a vis decisões individuais transitadas em julgado em passado ainda mais remoto. E é justamente o caso dos temas 881 e 885, que trataram especificamente da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSSL) que foi declarada constitucional pelo STF em 2007. A partir daquela data o Fisco passou a cobrar a contribuição das empresas que, em contraposição, sustentaram a existência de coisa julgada em seu favor.

    Atualmente, o Fisco pretende continuar a cobrança de tributos já lançados contra contribuintes que obtiveram decisões transitadas em julgado para não os recolher que restaram suplantadas por decisões do STF e também de lançar (cobrar) tributos não recolhidos nos anos anteriores, retroagindo, no primeiro caso, à decisão contrária à coisa julgada exarada pelo STF em 2007 e adicionalmente, no segundo caso, ao prazo decadencial (5 anos).

    Já os contribuintes estão certos de que há, na decisão do STF e, sobretudo na não modulação de efeitos, mácula ao Princípio da Segurança Jurídica, pelo que é certo que a matéria será revisitada, em diversos ângulos, em embargos de declaração assim que publicado o acórdão do STF.

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    O Ministro Barroso, em recente entrevista, defendeu não haver qualquer surpresa para os contribuintes de que os valores de CSSL continuariam a ser cobrados pelo Fisco após a decisão de 2007 e que, postura e contrário, caracterizaria “aposta” dos contribuintes.

    Ocorre que em 2011, o Superior Tribunal de Justiça, sob a sistemática de recursos repetitivos (Tema 340), conclui expressamente, no que tange a CSSL que “o fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade“.

    Ora, sem adentrar em outros argumentos contrários à aplicação retroativa do quanto decidido pelo STF acerca da superação da coisa julgada, sobretudo no caso da CSSL, parece que o precedente de 2011 do STJ (vinculante, nos termos do art. 1.039 do CPC) é fundamento suficiente para que os contribuintes pudessem se fiar – com segurança – de que, as decisões individuais transitadas em julgado para não recolhimento da CSSL não deixaram de vigorar, automaticamente, por conta declaração de constitucionalidade do Supremo em 2007.

    E parece bastante claro que aquele precedente vinculante do STJ de 2011 só perdeu sua eficácia com a novel decisão do STF de 2023 acerca da superação da coisa julgada, de modo, que, no mínimo por esta razão, para atender o Princípio da Segurança Jurídica, a superação da eficácia das decisões que permitiram o não recolhimento da CSSL somente se dê a partir do julgamento do STF em 2023.


    Eduardo Bomfim
    Sócio de Lee Brock Camargo Advogados, mestrando em direito Político e Econômico pelo Mackenzie, especialista em Direito Tributário e Direito Empresarial pela PUC/SP e graduado em Direito pela UNESP.

     

  • IA, predadores tecnológicos e massificação das demandas

    IA, predadores tecnológicos e massificação das demandas

    Na fase inicial da aplicação da tecnologia ao Direito, em 2015, surgiu o DoNotPay, considerado o primeiro “robô advogado” do mundo.

    Na verdade, consiste em um aplicativo de serviços jurídicos criado por um cientista da computação, Joshua Browder, que utiliza tecnologia de Inteligência Artificial  (IA) para prestar determinados serviços jurídicos por assinatura anual de baixo custo. A invenção teve como “cobaia” o próprio criador, que queria se livrar de multas continuadas de estacionamento durante a faculdade.

    Assim, havia no design da criação do DoNotPay um idealismo de seu criador: ajudar o cidadão comum a enfrentar a burocracia do Estado, caso de multas de trânsito excessivas, ou conflitos consumeristas de pequena monta com empresas privadas, como cancelamento de assinaturas, taxa ilegal, spam etc., que ocupam tempo demais e não compensam o custo da contratação de um advogado por parte do cidadão comum.

    A partir do momento que o usuário inseri no aplicativo do DoNotPay o que deseja contestar, a IA gera uma inicial e todos os demais recursos que venham a contestar a demanda em sua tramitação.

    Ao longo dos anos, a IA ajudou a sofisticar a argumentação legal utilizada, aumentando o sucesso do aplicativo e funcionalidades, tanto que este ano  ensaiou representar presencialmente um cliente no tribunal , fornecendo instruções através de fones de ouvido, mas recebeu objeções de várias entidades representativas de advogados e de promotores, que consideraram a prática ilegal.

    O DoNotPay não cobra taxa de desempenho ou participação nos benefícios que por ventura o cidadão venha a obter por decisão judicial. Esse não é o caso de sites e aplicativos que invadiram o mercado brasileiro, instigando os consumidores a ingressar com processos judiciais para qualquer tipo de conflito consumerista.

    Há uma linha tênue que divide a iniciativa dessas ferramentas tecnológicas sob o aspecto da desjudicialização e a facilidade de acesso à justiça, em contraposição à preocupação de que tais aconselhamentos e iniciativas possam ter. Certamente, não reúnem a qualidade necessária de informações legais, podendo causar problemas adicionais aos consumidores desinformados e sem a orientação de um advogado  “humano“.

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    Outro ponto preocupante é a regulamentação e adequação das leis aos aconselhamentos baseados em algoritmos e estatísticas. No Brasil, existem plataformas que atuam de forma nociva nas relações de consumo.

    Disfarçadas de civic techs (empresas de tecnologia que buscam o engajamento do cidadão), acabaram por receber a alcunha de “aplicativos abutres“. Essas plataformas promovem a judicialização predatória contra diferentes fornecedores em casos que poderiam ser facilmente resolvidos por mediação ou conciliação.

    No entanto, esses conflitos localizados acabam se arrastando pelos tribunais, prejudicando parte do jurisdicionado que efetivamente necessita de uma solução mais célere  da Justiça para questões graves e urgentes. Pouca gente sabe, mas alguns aplicativos abutres pertencem a fundos de investimento que atuam no exterior e visam tão somente o lucro decorrente da judicialização. 

    Eles se afastam do propósito de uma verdadeira civic tech, que deveria auxiliar no monitoramento de denúncias, melhoria dos serviços públicos e na busca de fomentar a participação do cidadão em consultas públicas e outras iniciativas de engajamento social. Em vez disso, se aproveitam de uma espécie de “comoditie legal” lucrativa, obtida pelo resultado esperado de determinadas ações contra empresas de alguns segmentos, como aviação e varejo.

    O aumento da litigiosidade no Brasil é um fenômeno que compromete o exercício pleno da cidadania porque limita o acesso à Justiça   e vem sendo minorado com a adoção de métodos consensuais de resolução de conflitos, nos quais as partes são incentivadas a encontrar uma solução, mais rápida e barata, para todos os envolvidos. 

    O Judiciário implantou a Política Judiciária Nacional de Tratamento adequado dos conflitos de interesse no âmbito do Judiciário (resolução CNJ n. 125/2010) e vem ampliando o número de  soluções de litígios por autocomposição. 

    Vale ressaltar que esses “abutre techs” não estão interessados em defender os direitos dos consumidores, mas a lucrar com eles, oferecendo até a possibilidade de adquirir o futuro direito de crédito .

    De acordo com dados da série histórica do Conselho Nacional de Justiça, a despeito das medias mitigadoras, vem crescendo o número de novos processos que ingressam no Judiciário brasileiro: Em 1990, ingressaram 3,6 milhões de novos processos; em 2002, totalizaram 9,7 milhões; em 2010, 17,7 milhões (1º grau) 3,3 milhões (grau de recurso). Em 2021, já atingimos 26,9 milhões, embora tenha havido anos de estabilidade no período, casos dos anos de 2015 e 2016.1

    A alta taxa de litígios do país vem sendo alvo de um efetivo esforço do CNJ voltado a educar e estimular os consumidores a optar pela conciliação e promover uma mudança na cultura de fornecedores e consumidores de que os direitos das partes somente são garantidos nas barras dos tribunais. 

    Em sentido oposto, esses sites e chatbots, instigam pelas redes sociais o consumidor  através de um marketing agressivo a buscar a litigiosidade para resolver qualquer tipo de reclamação, por mais banal que seja, ignorando os canais de atendimento extrajudiciais e mesmo plataformas digitais, como a Consumidor.Gov, com alta taxa de resolução, de forma rápida e gratuita.

    De forma concomitante, para coibir esse tipo de abuso dos aplicativos abutres, a Ordem dos Advogados do Brasil tem atuado fortemente contra esses predadores tecnológicos.

    O Conselho Federal da OAB criou um grupo de trabalho que irá discutir esse tipo de litigância predatória e propor ações de enfrentamento, com a criação de mecanismos que possibilitem identificar esses aplicativos, propiciando a resposta adequada. Para o conselheiro e coordenador do grupo junto ao Conselho Nacional de Justiça, “o problema tem começo, meio e fim. O Judiciário está na sua fase intermediária. Não é a decisão de mérito em ação coletiva que o cria.

    A raiz do problema da litigância predatória se encontra em decisões equivocadas no momento da definição de políticas públicas ou nas estratégias empresariais, estas sim predatórias, e não no consumidor lesado que procura a Justiça através do seu advogado. Se existe a lesão, o processo judicial, individual ou coletivo, tem de levar a sua reparação.”2

    A linha de atuação de OAB está centrada no exercício irregular da atividade da advocacia e captação ilegal da clientela promovida pelos sites e aplicativos abutres e têm sido vitoriosa nas ações impetradas na Justiça contra esses chatbots por exercerem ilegalmente a advocacia, uma vez que não possuem inscrição nos quadros da Ordem, como estabelece a Lei 8.906/1994 e o Código de Ética e Disciplina da OAB, podendo gerar uma série de danos ao direito dos consumidores.

    A tecnologia de IA pode ser empregada para servir o consumidor que se sinta lesado ou para dar lucro a terceiros que expoliam esses consumidores, fomentando a litigiosidade dentro do sistema judicial. 

    A conduta das partes, portanto, é fundamental para saber sopesar como deve encaminhar os seus potenciais conflitos, levando em conta os fatores que asseguram seus interesses e relevando uma solução oportunista e insegura, que resulta na massificação das demandas, prejudicando a cidadania e comprometendo a eficiência da Justiça.

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    1 Disponível aqui. Acesso em 15 mar 2023.

     

    2 Disponível aqui. Acesso em 15 mar 2023.

    Fonte: Migalhas

    Autor(a):  Fabio Rivelli e Jayme Barbosa Lima Netto