Dia: 6 de abril de 2023

  • A flexibilização no regime jurídico das startups

    A flexibilização no regime jurídico das startups

    Muito se fala, na mídia especializada, sobre as startups. Geralmente, o termo se refere às empresas de porte pequeno ou médio consideradas inovadoras, abrangendo praticamente qualquer setor, embora muitas vezes o termo seja utilizado quando se  refere especificamente ao setor de tecnologia.

    Esse tipo de entidade tem tido um impacto relevante na economia brasileira nos últimos tempos, gerando empregos e causando mudanças nas estruturas de indústrias diversas, contando, geralmente, com estrutura, capital e escala menores do que aqueles de empresas bem estabelecidas.

    A “explosão” de startups, no exterior e no Brasil, criou desafios para o Direito, em diversas  áreas. Em razão de suas características de alto risco e alta expectativa de retorno, o modelo empresarial das startups é baseado em incertezas, e essas empresas, geralmente, possuem estrutura bastante incipiente. Desse modo, as startups muitas vezes possuem estrutura jurídica limitada e dificuldades para observar o regime legal aplicável a outras empresas, com mais tempo de rodagem. 

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    Atentando-se a isto, em 2021, foi aprovada a LC 182/21, o Marco Legal das Startups. A lei foi criada visando estabelecer regulamentações para o empreendedor inovador, trazendo regras e critérios para o enquadramento de sociedades como startups, como a limitação de faturamento (receita bruta de até R$ 16 milhões no exercício anterior, ou proporcional, caso constituídas há menos do que um ano). 

    Modelo de negócio (utilização de modelos de negócios inovadores para a geração de produtos ou serviços ou enquadramento no regime especial Inova Simples), e tempo de exercício da empresa (até 10 anos de inscrição no CNPJ/ME).

    Parte do objetivo da lei seria incentivar que as startups, ainda que incipientes, pudessem aderir à legislação brasileira, por meio da simplificação do regime jurídico a elas aplicável.

    Podemos citar como algumas facilidades trazidas pela lei: novas formas de investimento para quem quer investir em uma startup; exclusão do “investidor anjo” como responsável por dívidas trabalhistas da startup; e simplificação para a participação da startup em procedimentos de licitação de compras públicas, em relação a serviços inovadores.

    No âmbito da organização societária das startups, cumpre ressaltar a previsão de novo regime jurídico para as chamadas “sociedades anônimas simplificadas“, por meio de alteração à lei 6.404/1976, que estabelece regras menos rígidas para as empresas com receita bruta anual de até R$ 78 milhões.  

    Ainda, foram criadas iniciativas para que instituições possam testar projetos inovadores em certas áreas com usuários reais, com requisitos regulatórios mais brandos – o sandbox regulatório, que surgiu para incentivar a inovação e projetos disruptivos, uma oportunidade para que as startups tenham possibilidade de testar suas inovações em um ambiente “controlado” e seguro.

    Desse modo, uma startup pode verificar se sua ideia de inovação será bem sucedida antes de se sujeitar a todas as regras aplicáveis a empresas já estabelecidas no mercado. Tal ferramenta é especialmente interessante no caso de formas de negócio ou de tecnologia que sejam inovadoras, e para as quais o ambiente regulatório não possui regras bem desenvolvidas. 

    De maneira geral, no âmbito do sandbox regulatório, há critérios para que uma empresa possa usufruir da flexibilização temporária das normas regulatórias aplicáveis à sua atividade – dentre elas, podemos citar o número limitado de consumidores que podem ser atendidos pela empresa durante seu período de teste.

    O “teste” da atividade da empresa é então observado pelos reguladores, que avaliam o possível impacto no mercado, bem como o desenvolvimento da inovação proposta e, caso os testes tenham resultados positivos, a startup recebe autorização para que seu negócio exista de forma permanente.

    A implementação do sandbox regulatório já foi objeto de consultas e resoluções da CVM – Comissão de Valores Mobiliários, da SUSEP – Superintendência de Seguros Privados  e do BACEN – Banco Central do Brasil. No caso do BACEN, as empresas interessadas devem demonstrar um modelo de negócio inovador que esteja mencionado na regulamentação do programa, e que esteja sob a competência do BACEN ou do Conselho Monetário Nacional. 

    Da mesma forma, no caso do sandbox regulatório da CVM, regulamentado pela resolução CVM 29/21, a autarquia aceita a submissão de projetos de empresas que tenham negócios inovadores voltados para atividades cuja supervisão caia sob sua competência, estabelecendo procedimentos para o estabelecimento de regras mais flexíveis a estas empresas (com projetos, por exemplo, de tokenização de valores mobiliários e gestão digital de livros societários).

    O regime de regulamentação experimental da SUSEP, por sua vez, regulado pela resolução 381/20, é voltado para empresas que ofereçam novos serviços e tecnologias no setor de seguros privados (como, por exemplos, seguros para tablets e animais de estimação, ou serviços que utilizem blockchain no registro de eventos da apólice de seguros), que receberão autorização para funcionar por três anos sob observação da autarquia.

    Com a mesma estratégia do Marco Legal das Startups, de flexibilizar regras para se enquadrar a realidade dessas empresas, a ANPD editou a resolução do Conselho Diretor da ANPD no 2/22 (Resolução CD/ANPD no 2), cujo objetivo principal foi estabelecer flexibilizações à LGPD para agentes de tratamento de pequeno porte, com regras simplificadas e prazos expandidos. 

    A norma define como agente de tratamento de pequeno porte as “microempresas, empresas de pequeno porte, startups, pessoas jurídicas de direito privado, inclusive sem fins lucrativos, nos termos da legislação vigente, bem como pessoas naturais e entes privados despersonalizados que realizam tratamento de dados pessoais, assumindo obrigações típicas de controlador ou de operador“. 

    Startups, por sua vez, são definidas como “organizações empresariais ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados, que atendam aos critérios previstos no Capítulo II da LC 182/21“.

    A resolução buscou trazer, no bojo da definição de agente de pequeno porte, aquelas empresas que teriam uma maior dificuldade para se adequar à LGPD, por terem menos recursos quando comparadas às grandes organizações. 

    Sem prejuízo desta definição, no entanto, o artigo 3º da resolução exclui alguns agentes de tratamento da definição de “agente de pequeno porte“, quais sejam, aqueles que ultrapassam, individualmente ou em conjunto com seu grupo econômico, determinados limites de receita bruta, e aqueles que realizam tratamento de alto risco para os titulares.

    Smart Contracts

    Dentre as flexibilizações para agentes de pequeno porte, podemos ressaltar a desnecessidade de indicar um encarregado de dados (DPO), a simplificação do registro das atividades de tratamento, a previsão de menor rigor para as comunicações sobre incidentes de segurança, a simplificação dos requerimentos da política de segurança da informação e a previsão de determinados prazos em dobro, em relação  aos dispositivos previsto na LGPD. 

    Cumpre reforçar, no entanto, que, exceto pelas dispensas expressas na Resolução, os agentes de pequeno porte devem observar a LGPD de forma integral.

    Embora as flexibilizações possam facilitar a adequação de pequenas empresas às normas de proteção de dados. 

    Há algumas disposições da resolução que podem trazer dúvidas às empresas, especialmente em relação à previsão, no artigo 16 da norma, de que a ANPD “poderá determinar ao agente de tratamento de pequeno porte o cumprimento das obrigações dispensadas ou flexibilizadas neste regulamento, considerando as circunstâncias relevantes da situação, tais como a natureza ou o volume das operações, bem como os riscos para os titulares“. 

    Ademais, o artigo 5º da norma ainda estabelece a responsabilidade do agente de comprovar que é um “agente de pequeno porte“, quando solicitado pela ANPD. Tais disposições estabelecem maior subjetividade na verificação de aplicabilidade da norma, podendo criar insegurança jurídica para empresas que desejem aderir às regras estabelecidas na Resolução. 

    Ademais, a Resolução prevê que aquele que se enquadra como agente de tratamento de pequeno porte, mas realiza tratamento de alto risco, não pode se beneficiar da flexibilização. Cabe nos perguntar – o que seria considerado um tratamento de alto risco? A própria resolução entende que é de “alto risco” o tratamento de dados em larga escala, que pode afetar interesses e direitos fundamentais.

    Mas, existe uma grande subjetividade na definição de tratamento em larga escala – seria isso o tratamento de 50.000 de titulares de dados? Ou apenas tratando dados de 5.000 titulares o agente já se enquadraria em uma larga escala, não podendo utilizar as regras menos rigorosas editadas pela ANPD? Na Resolução CD/ANPD 2, a ANPD reconhece que poderia vir a editar guias ou orientações para fins de avaliação do tratamento de alto risco, mas isso ainda não foi realizado.

    Além da subjetividade da definição de tratamento de alto risco acima descrita, ainda cabe destacar que estão excluídos do enquadramento como agente de pequeno porte as empresas que usem tecnologias emergentes ou inovadoras, que utilizem dados pessoais sensíveis, de crianças/adolescentes ou idosos, ou que tenham, em sua atividade, decisões tomadas exclusivamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais.

    Ocorre que o próprio conceito de startup muitas vezes inclui a utilização de tecnologia emergente ou inovadora em seus processos e atividades. Além disso, cabe-nos questionar o que seria uma tecnologia emergente ou inovadora para a ANPD.

    Dessa forma, apesar de as startups serem contempladas como um possível agente de pequeno porte, a própria resolução parece excluir do seu escopo de aplicação a grandemaioria das startups, ao incluir tecnologia emergente ou inovadora como um critério específico que denota o tratamento de alto risco, obrigando estas sociedades a não tratarem os dados nos moldes da Resolução, e sim obedecendo a LGPD em sua totalidade.

    De certa forma, a Resolução é um contraponto ao sandbox regulatório, uma vez que, ao invés de criar um ambiente experimental para novas tecnologias, identifica nestas um risco maior para os titulares de dados, cujos interesses são tutelados pela LGPD e pela própria autoridade.

    Percebemos, que a Resolução contém diversos pontos que exigem maior esclarecimento, e que, sem maiores orientações da ANPD, as empresas – especialmente as startups – poderão se ver diante de situações de insegurança jurídica, uma vez que a norma contém exceções a sua aplicabilidade que dependem de critérios subjetivos e/ou cujo significado dependerão de futuros entendimentos da ANPD.

    Dessa forma, uma empresa que  pretenda se enquadrar como agente de pequeno porte poderá se ver diante de penalizações no âmbito da supervisão da ANPD, ainda que entenda estar seguindo aquilo que foi estabelecido em suas normas.

    Uma forma com a qual a autoridade poderá mitigar a insegurança jurídica envolvida na aplicabilidade das normas contidas na Resolução seria por meio da edição de um guia orientativo, como já foi feito, por exemplo, para esclarecer regras sobre o encarregado de dados (sendo que a elaboração de guias e orientações já é prevista na resolução).

    Tal guia poderia ajudar a dar mais objetividade aos critérios que podem excluir startups da flexibilização trazida pela Resolução CD/ANPD 2, e evitar que participantes do mercado deixem de adotar tais regras em razão do receio de penalizações posteriores.

    A possível penalização de agentes que, no entendimento da ANPD, não possam se utilizar da flexibilização, ainda que, por critérios objetivos, se enquadrem na definição de “agentes de pequeno porte“, podem diminuir a aderência a tais normas, e prejudicar a eficiência da Resolução e o alcance de seu objetivo – isto é, flexibilizar a aplicação da LGPD para agentes que tenham dificuldade em observá-la em sua totalidade. 


    Beatriz Ferreira Guimarães

    Advogada da Lee, Brock, Camargo Advogados, pós-graduada em Direito Digital pela UERJ e Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio); pós-graduada em Direito Civil pelo Mackenzie e integrante da Comissão Especial de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial da OAB-SP.

  • O incidente LearJet em Congonhas e as consequências inevitáveis na aviação

    O incidente LearJet em Congonhas e as consequências inevitáveis na aviação

    Com cerca de 40 pousos e decolagens por hora, o Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, sofreu forte impacto em suas operações no dia 9 de outubro de 2022: uma aeronave de pequeno porte, modelo LearJet, derrapou na pista durante o pouso, em decorrência do estouro dos pneus.

    O incidente1 ocorrido por volta das 13h30 de um domingo de intenso movimento no aeroporto hub (que funciona como centro de distribuição de voos) felizmente não deixou vítimas. E foi por pouco que ele não invadiu a Avenida Bandeirantes, situada às margens da pista, o que poderia ter ocasionado um acidente de maiores proporções.

    A partir de então, uma série de providências protocolares foram iniciadas, dentre elas a imediata investigação do incidente pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), órgão vinculado ao Comando da Aeronáutica, que inicia a investigação diretamente no local do incidente. 

    Assim, somente após a liberação do Cenipa, a Infraero, responsável pela administração do Aeroporto de Congonhas, poderia iniciar os procedimentos para retirada da aeronave e liberação da pista. Entretanto, a Infraero se manteve inerte até a retirada da aeronave pelo seu proprietário quase nove horas após o incidente.

    Por conta do incidente, o Aeroporto de Congonhas ficou fechado até às 22h18. Ainda, os impactos na malha aérea até sua reorganização se prolongaram por cerca de três dias.

    O CEO da Latam, Jerome Cardier, se pronunciou sobre o episódio: “Só em função deste incidente e seus efeitos reacionários, entre ontem e hoje, tivemos mais de 180 voos cancelados, atrapalhando a vida de quase 30 mil pessoas. Tivemos, inclusive, impacto na saída dos voos internacionais de Guarulhos (o trecho em direção a Madri, por exemplo, foi cancelado porque a tripulação não chegou a tempo)”.

    Além do impacto, a fala do executivo chamou atenção para os prejuízos e deixou no ar a questãoo que mais deve acontecer em Congonhas para que decidam deixar de operar com aviação de pequeno porte em um aeroporto tão central para toda a malha aérea do país?”

    Todos os voos respeitam os chamados slots, intervalo de tempo de pousos e decolagens, coordenados pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). A menção “intervalo de tempo” demonstra a dimensão da operação diária de um aeroporto, onde os pousos e decolagens são ordenados em intervalo de minutos.

    Assim, a retomada e reorganização de todos os pousos e decolagens foram impactados, tendo como consequência centenas de cancelamentos, atrasos e alterações de voo, prejudicando e frustrando a expectativa de milhares de passageiros.

    A aviação civil como atividade empresarial assume deveres e obrigações pelos acontecimentos que prejudiquem o cumprimento dos contratos de prestação de serviços. Em tese, todos que participam da cadeia de fornecimento seriam responsáveis pelo ocorrido, e seriam obrigados a ressarcir os prejuízos no caso de uma condenação judicial em ação de um consumidor

    Esse tipo de responsabilidade decorre da Teoria do Risco da Atividade, pela qual todos os agentes que participam da cadeia de fornecimento devem responder por prejuízos causados, e da Teoria da Responsabilidade Objetiva, que reconhece e responsabiliza fornecedores de bens e serviços, independentemente da intenção do agente.

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    Contudo, toda regra comporta exceções. Aqui, falaremos sobre a força maior e o caso fortuito previstos – implicitamente na legislação geral, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), e explicitamente na legislação especial, p Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA).

    Uma das exclusões de responsabilidade presentes no CBA foi inserida pela Lei 14.034/2020, que incluiu o inciso II do § 1º do artigo 256, eximindo o transportador aéreo na ocorrência de caso fortuito e força maior.2

    A mesma lei incluiu também o § 3º ao artigo 256, definindo que caso fortuito ou força maior são “eventos, desde que supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis”, tal como a restrição ao pouso ou à decolagem decorrente de indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária.3

    Há discussão doutrinária sobre o caso fortuito e suas subdivisões (se ele é interno ou externo), bem como a possibilidade do rompimento do nexo de causalidade entre ação e resultado, excluindo a responsabilidade. Para nossa discussão, nos importa apenas focar o senso crítico na previsibilidade e na inevitabilidade dos resultados, elementos que direcionam à resposta correta.

    A jurisprudência pacífica reconhece a ocorrência do caso fortuito interno e externo, sendo este último capaz de romper o nexo de causalidade entre a conduta e o dano.

    A previsão de um incidente ou acidente é crível, mas seus efeitos são inevitáveis. Voltando ao incidente de Congonhas, é seguro afirmar que a situação relatada não decorre de eventos naturais, mas sim de ação humana, ainda que previsível, cujas consequências sem sombra de dúvidas eram inevitáveis. Até este ponto nos parece óbvio!

    Mas, na prática, o volume de ações judiciais propostas contra companhias aéreas, atrelada à baixa aplicação da legislação especial do Código Brasileiro de Aeronáutica e das alterações trazidas pela lei 14.034/2020, acaba por comprometer a qualidade e a continuidade da aviação comercial.

    A crítica se atine à interpretação absoluta do sistema protetivo de consumidor, com apertado espaço para discussão e detalhamento fático, sem que as circunstâncias do caso concreto sejam sopesadas e ponderadas antes de uma decisão, o que fomenta a indústria do dano moral, do que falaremos ao final.

    Por óbvio, a aviação civil é uma atividade empresarial e por tal é remunerada, contudo, não é qualquer fato que lhe possa ser imputado pela teoria do risco, vez que a inevitabilidade deve ser analisada individualmente. Assim, é certo que um incidente ou acidente seria previsível, mas por vezes – como na situação discutida – torna-se inevitável reconhecer o caso fortuito externo.

    Neste sentido, Rizzato Nunes afirma que “não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados pelas condições atmosféricas geradas pelas cinzas do vulcão e que impedem a navegação”.

    As cinzas e a erupção de um vulcão são previsíveis, mas as consequências inevitáveis. Assim, reconhecer o caso fortuito externo no incidente de Congonhas não fere o sistema protetivo das relações de consumo.

    Ademais, nesse tocante, o próprio Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 14º, que trata da responsabilidade objetiva (aquela sem necessidade de demonstração de culpa) de prestadores de serviços, reconhece a excludente de responsabilidade do fornecedor, no caso, da companhia aérea, por fato decorrente de culpa exclusiva de terceiro.4

    Portanto, sendo caso fortuito previsto no Código Brasileiro de Aeronáutica ou se tratando de culpa exclusiva de terceiro, positivada pelo Código de Defesa do Consumidor, não deveria restar dúvida quanto à isenção de responsabilidade da companhia aérea em razão da impossibilidade de operação ocasionada pelo malfadado incidente do jato no aeroporto de Congonhas.

    Reafirmamos que não é a gravidade dos acontecimentos que afasta ou não a responsabilidade, mas sua inevitabilidade. Vejamos os casos de fortes chuvas, que são eventos previsíveis, mas de consequências inevitáveis e que impactam a malha aérea, obrigando companhias a cancelar seus voos.

    jayme

    Estes cancelamentos decorrem de protocolos de segurança e zelo para com a vida dos próprios passageiros. Contudo, permanece a indagação: é razoável que as companhias indenizem os passageiros por cancelamentos que visam sua própria segurança?

    A Lei 14.034/2022 também alterou o CBA para inserir dispositivo que prescreve a necessidade da prova da ocorrência de prejuízos e sua extensão para justificar uma indenização por danos.5

    Um acórdão da apelação6 reconheceu corretamente a improcedência da demanda e inocorrência dos danos morais, diante das fortes chuvas que impactaram as operações do Aeroporto de Guarulhos.

    Portanto, é razoável que uma companhia aérea arque com indenizações, materiais ou morais, decorrentes de um evento previsível, mas de consequências inevitáveis? Por óbvio, não. 

    1 De acordo com o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), incidente aeronáuticoé toda ocorrência associada à operação de uma aeronave em que haja intenção de realizar um voo, que não chegue a se caracterizar como um acidente, mas que afete ou que possa afetar a segurança da operação”, ao passo que um acidente aeronáutico 

    E toda ocorrência relacionada com a operação de uma aeronave no período entre o embarque do passageiro, com a intenção de realizar um voo, até o momento em que todas as pessoas tenham dela desembarcado e, durante o qual, pelo menos uma das situações abaixo ocorra:

    1. a) Qualquer pessoa sofra lesão grave ou morra em decorrência de sua presença na aeronave, em contato direto com qualquer de suas partes, incluindo aquelas que dela tenham se desprendido, ou submetido à exposição direta do sopro de hélice, rotor ou escapamento de jato, ou às suas consequências.

     Exceção é feita quando as lesões resultarem de causas naturais, forem auto ou por terceiros infligidas, ou forem causadas a pessoas que embarcaram clandestinamente e se acomodaram em área que não as destinadas aos passageiros ou aos tripulantes.

    1. b) A aeronave sofra dano ou falha estrutural que afete adversamente a resistência estrutural, o seu desempenho ou as suas características de voo ou, ainda, se exigir a substituição de grandes componentes ou a realização de grandes reparos no componente afetado. Exceção é feita para falha ou danos limitados ao motor, carenagens, seus acessórios, hélices, pontas de asas, antenas, pneus, freios, ou pequenos amassamentos ou perfurações no revestimento da aeronave.
    2. c) A aeronave seja considerada desaparecida ou o local onde se encontra seja absolutamente inacessível. 

    2 Art. 256. O transportador responde pelo dano decorrente: § 1° O transportador não será responsável: II – no caso do inciso II do caput deste artigo, se comprovar que, por motivo de caso fortuito ou de força maior, foi impossível adotar medidas necessárias, suficientes e adequadas para evitar o dano.

    3 Art. 256. (…) § 3°Constitui caso fortuito ou força maior, para fins do inciso II do § 1º deste artigo, a ocorrência de 1 (um) ou mais dos seguintes eventos, desde que supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis:
    I – restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de condições meteorológicas adversas impostas por órgão do sistema de controle do espaço aéreo;
    II – restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária;
    III – restrições ao voo, ao pouso ou à decolagem decorrentes de determinações da autoridade de aviação civil ou de qualquer outra autoridade ou órgão da Administração Pública, que será responsabilizada;
    IV – decretação de pandemia ou publicação de atos de Governo que dela decorram, com vistas a impedir ou a restringir o transporte aéreo ou as atividades aeroportuárias. 

    4 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. (…)
    § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
            I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
            II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

    5 Art. 251-A. A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga.

    6 Acórdão 1000860-09.2022.8.26.0003 no TJSP.


    ROGÉRIO MARTES – Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela EPD. Especialista em Propriedade Imaterial pela ESA-SP. MBA em Gestão de Tecnologia da Informação pela FGV/SP. Gerente Jurídico da LATAM Airlines Brasil.

    JAYME BARBOSA LIMA NETTO – Mestrando em Direito dos Negócios na Fundação Getulio Vargas. MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Advogado e sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados